Filme de amor

Tiago Mesquita
sobre o filme "The view from the widow" de Carlos Issa, Marcius Galan e Newton Leitão, 2020

Tal as faixas amarelas de suas esculturas, o gancho em Vista da Viúva, filme de Marcius Galan em parceria com Carlo Issa e Newton Leitão, é um daqueles elementos arquitetônicos, que ao perder a função que sempre lhe foi atribuída, perde alguns dos seus significados e reforça outros. No filme, ele é um personagem teatral solitário, de voz grave, que é chamado à conversa por suas memórias e delírios. Jaz isolado, rodeado por um futuro que foi abandonado. O objeto de sua obsessão é um móbile de Alexander Calder. O apêndice sustentou a peça por anos, de maneira servil e amorosa, ela não está mais ali (voltará?). Sobra uma miragem, talvez obra da velhice, talvez da aposentadoria.

A Viúva Negra, escultura de Alexander Calder, foi fundamental para a arte abstrata no Brasil. Ela foi um dos trabalhos que encorajou os artistas brasileiros a abandonarem temáticas mais anedóticas e mergulharem nas pesquisas perceptivas da abstração geométrica. A junção da criação de Calder com o projeto pioneiro da sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil de São Paulo (IAB-SP), coordenado pelos arquitetos Miguel Forte, Rino Levi e Abelardo de Souza, materializa esse esforço construtivo que animará a criação visual na década seguinte.

Tal investida era a parte cultural de um projeto de atualização, típico do pós-guerra, que pretendia vencer o atraso brasileiro. O debate em torno do que precisaria ser feito para uma nova inserção do Brasil em um sistema internacional de trocas era intensamente disputado. Um debate rico que animou a produção científica, tecnológica, industrial, o pensamento social e as artes. Em 1964, o debate foi paralisado e deu vitória a um tipo de modernização conservador, elitista e autoritário. Celso Furtado, um dos mais brilhantes pensadores brasileiros da época, ao teorizar o subdesenvolvimento, percebe que as elites locais nasceram modernas e ao tentar se atualizar, sempre repunham o atraso de maneira mais complexa. Assim, a violência social não era um subproduto de um passado atávico, mas uma maneira moderna da sociedade se inserir internacionalmente.

A Viúva Negra foi uma das personagens silenciosas durante esse debate. Foi mostrada no Brasil pela primeira vez em 1948. Pouco depois, em agradecimento ao esforço dos arquitetos brasileiros para realizar a sua exposição e vitalizar o meio de arte, é doada por Calder ao IAB. Por isso, a Viúva povoou o prédio até 2017, quando foi retirada.

De lá para cá, aquela escultura pensada nos Estados Unidos, esteve diante de grandes mudanças: O otimismo dos anos 1950 minguou com a ditadura, mas testemunhou debates aguerridos. Renasceu com o movimento das Diretas Já, que terminou derrotado, porém nos logrou a Nova República e novas esperanças. Essas tiveram formas distintas até serem golpeadas de morte com a violenta deposição de Dilma Roussef, em agosto de 2016, quase a mesma época que o móbile de Calder sai do IAB.

Em todo esse período, se levarmos em conta as falas dos objetos no filme, a Viuva Negra viveu prazerosamente sem olhar para a janela ou prestar atenção no barulho que vinha da rua. Composta por pás presas na ponta de braços de arame, que balançam e giram em múltiplas direções, quando enganchadas por um anzol, para citar a bela metáfora lembrada pelo filme. Dona de si, no controle da ação, a Viúva bailava, em direções variadas, atiçando novas descobertas satisfeitas e prazerosas ao responder aos toques da atmosfera, dos objetos e das pessoas. Em sua sensualidade fez Mário Pedrosa lembrar da música e da dança. No filme, contudo, o gancho fala como quem sente falta de sexo.

O seu espiralar era autorreferente, feito de amor carnal, duradouro. A viúva que fala em seus delírios, lembra de prazeres sensoriais: luz, cor, toque, texturas, temperatura. Pede para o gancho, delirante, imaginar orgiasticamente se todos pudessem tocá-la quando ela estava ali dependurada.

Por isso, a nostalgia da voz profunda de Jonathan Gall é de natureza privada; urgente, mas privada. Não é pouca coisa por isso. O amor torna a fateixa dependente da dança delicada da escultura e o faz viver prostrado sem ela. O pedaço que sobra não consegue pensar a vida dali para frente. Fica melancolicamente preso a um passado, onde mesmo as quedas, os tropeços são idealizados. De fato, o deleite que sentimos diante de um móbile de Calder tem natureza doméstica. Ele é um artista que lida com alegrias lúdicas, utopias, não com conflitos. Talvez por isso, a melancolia expressa nos diálogos do filme é privada. O gancho sobrevive à dor de viver só sofrendo de dependência afetiva.

O filme, por sua vez, nos faz ver algo maior. A falta faz lembrar a descrição feita pelo cantor e compositor Chico Buarque desse desejo incontrolável, impronunciável, em sua canção O que será: “o que me faz mendigo, me faz suplicar. O que não tem medida, nem nunca terá. O que não tem remédio, nem nunca terá. O que não tem receita[1]”. Na época, a canção além de expressar um desejo interpessoal, incontrolável, também falava da frustração de quem procurava mudar a vida diante dos limites estreitos da ditadura cívico-empresarial-militar. O Brasil vive momento parecido, de encurtamento das nossas expectativas históricas.

A razão instrumental que governa as trocas internacionais, que aumenta os dividendos, que impõe austeridade a parte mais vulnerável da população brasileira é refratária aos prazeres mais íntimos. Tudo deve servir a um propósito, atender às expectativas do capital. A extrema direita neoliberal quer derrubar as nossas portas, dizer de que maneira devemos viver, o quanto devemos trabalhar e para quem. Hoje entende-se melhor que as menores alegrias, o direito de ficar atoa, são resultado de lutas históricas. Até mesmo sentir-se triste por não poder mais ver a viúva bailar.

[1] Chico Buarque de Hollanda na canção O que será (À flor da pele). Gravada originalmente em 1976 , para a trilha sonora do filme Dona Flor e seus dois maridos de Bruno Barreto.

They Endured

Tiago de Abreu Pinto
Galerija Gregor Podnar, 2020

Who are they?

Prior to their stories, it is important to point out the context of the aforementioned person. His craft, let me put it this way, takes place along a flow of ideas that leaves traces of other works on the way, a continuous network of digressions that would make any person, conscious of his process, with the feeling of already being in the middle of a story that started some time ago. If only we could see what is happening here. Let’s be clear about it. Its beginning could be explained with the aid of this work: iron ribbons hanging from a narrow piece of metal. Leads us immediately to the physicality of a flag. Its schematic missing parts lay there as the remaining fragments of a country. We do our jobs and we rebuild it only using our imagination. The latter, is a crucial element in this project: the imagination is ingrained in the very language of his works. In his realm, the incompleteness theorem is shown in iron: a thick iron base, a missing rectangle space, which hangs like a flag on the mast of a sailing vessel resisting, enduring the elements as its iron ingrained nature. 

In the light of a new piece we remain still: columns surround us. In the context of these pillars, the clever eyes won’t see only a hook that emerges from it. The hook is there for this same reason: semicircle, or open circle, shape is full of tension. Its configuration goes far: a crosier, a fishhook, a hanging hook, a sickle, a billhook, a shepherd’s crook, a hook of moon or a serpent’s tail ending in a hook. The secrecy-shrouded landscape opens up before them: the multiperspectivally tensions embrace the boundaries of history. A concrete idea is sought, but to believe one will find it under a simple and straightforward manner is to swallow the bait. Even a hook on the wall, with a drawn circle holding a hook with a piece of the cut wall, serves as binoculars: ways of seeing, of addressing different focus, distance and closeness: magnification: this (alongside cartography) was the first strike capacity of explication that coerced the previously invisible world to become pictorial . And, when we think that its symbolic potential would vanish, we see ourselves before the ultimate tension assembled by the hook: the view from the widow. A video that unfolds around the hook that held Alexander Calder’s work.  

Would the specificity of this project encircle the entire exhibition? This would only be feasible if the grid of rubbers stained with graphite dust wouldn’t allude to the undoubtedly fact that through these lines we would talk about opposites; on the fact that even to erase history would be to do history. The non-realization of the project (encapsulated in the symbolic potential of the eraser) would allow an increasing explicitidiness of stances pro resistance, pro endurance. Across the board, its margins, its lines, we always encounter world-openness: starting from the basic domestic situation (…) the expansion process proceeds from the village to the city, to the empire and onwards to the finite universe until it loses itself in the uninhabitable boundless space.   

The questions imposed in this context have the strength of drawing forth a response: a sort of metallic thread that holds together two unmated substances: a thread that attracts a cut in the pillars that surround us. But, who are they? They are the ones who endure. People, matters, events, doesn’t matter whom or what. Suspended of time, space, causality. In the present time, on its temporal bandwidth, or at the width of your present, your now, we sometimes forget about what we are doing here, at this place. Or, why we should endure the manifestations that only consider the instant. That let the future or the past vanish. Who are they, you ask? They are, and they will be. They endured the weight of movement, the abandonment, the post-war or the post-celebration. They have answered and questioned triggered by the crisis that surrounded them. But, to question is to endure, it is to see that this obscure point that allows us to see, this sun situated eternally below the horizon, this blind spot that the gaze is unaware of, islet of absence in the heart of vision – that is the aim of the quest and the setting, the stake, of the plot . And that was all .

  1.  BORGES, Jorge Luis. The Basilisk in The Book of Imaginary Beings. P. 29 (Paraphrased)
  2.  SLOTERDIJK, Peter. Spheres. Volume 3: Foams. Plural Spherology. Translated by Wieland Hoban. South Pasadena: Semiotext(e), 2016. P. 75-76. 
  3.  SLOTERDIJK, Peter. Spheres. Volume 3: Foams. Plural Spherology. Translated by Wieland Hoban. South Pasadena: Semiotext(e), 2016. P. 16. 
  4.  PYNCHON, Thomas. Gravity’s Rainbow. New York: Penguin classics deluxe edition, 2006. P. 517.
  5.  BLANCHOT, Maurice.On an Art Without Future in The Book to Come.Translated by Charlotte Mandell. Stanford: Stanford University Press, 2003.P. 160
  6.  FAULKNER, William. The Sound and the Fury. London: Vintage Classics, 1995. 

Fervor

Tiago de Abreu Pinto
Galeria Luisa Strina, 2020

Fervor

Em sua busca, em meio aos trabalhos de concreto (matéria-prima singular para ele), precisamente ali, encontrou a resistência.

Entretanto, depois de tantos outros artistas antes dele, de que modo comporia sua forma?

Seu ofício, coloquemos assim, se realiza ao longo de um fluxo de ideias que deixa no caminho vestígios de trabalhos, uma contínua rede de digressões que daria a qualquer indivíduo, a par de seu processo, a sensação de estar já em meio a uma história que começou há algum tempo.

Ora, que história é essa?

Ele a narra, enquanto acontece, uma história entremeada por interpolações que cobrem de maneira sutil nossa realidade. Vejamos: duas colunas de concreto com cunhas. Esta última tão ampla em seus significados. Nome pessoal, expressão, lugar, coisa. A cunha parece sublinhar as intenções, os equilíbrios; da intrusão, mas pertinente intervenção. Não bastasse isso, nesse corpo estranho encontramos a força da obviação dessa matéria. A presença dos fatos incontornáveis. E, por não se limitar a nenhum dos sentidos anteriores, se amplia e se transforma em reduto impessoal, espaço de influxo universal. A cunha cavou seu espaço: resistiu. Eis outro trabalho: no chão, um disco de concreto com cunha. O prenúncio anterior poderia servir de pista, mas não de resposta, pois aqui nos deparamos com outra inflexão. Uma vez mais (e, não pelo concreto), o artista nos faz ter um flashback. E, se resistimos em apreender a razão dessa nova inserção, sabemos que ele fará novamente no futuro. Bom, não confundamos sua proximidade com o chão com a falta de peso estrutural. Sabemos seu nome, suas propriedades, sua razão de ser. Nesse caso, parece ter o papel de apontar para um centro de convergência, o âmago da questão.

Ou será demais assumir que nele vemos nossa própria situação econômica? Tentação irrefreada, porém, uma vez mais, sabemos que, no particular, no específico, não encontraremos a sua real força.

No concreto? No concreto.

Seria essa matéria indicativa da especificidade do que se trata aqui?

Seria uma ilusão presumirmos essa relação?

Não deixemos a sombra dessa questão incomodar nossa visita. Sigamos: três bases maciças de madeira queimadas por bronze líquido. E, assim, fazemos soar uma melodia: o som do bronze em contato com as bases de madeira. Mas, é uma que já não escutamos. Sabemos que não foi algo gradual, sutil. Apenas ficamos com suas novas alturas inauditas. Seus foscos tons reluzem fortes. Parecem não esgotar todos os seus meios para serem, subsequente e inevitavelmente, substituídos. Continuam ali: resistentes.

E, que sucessão de outros trabalhos distinguiremos aqui?

Nesse espaço repleto de relativa opacidade, haveria outrossim momento para sobressalto material como o seguinte: lixa e vidro pintado de vermelho a terroso. O tom se torna protagonista (faiscar mineral), por um momento, em pulsos rápidos: vermelho lávico, grená, bordô, em ebulição, queimando-se, até atingir, intrusiva e vulcanicamente, a escuridão. E, a arquitetura-parede converte-se em matéria abrasiva capaz de consumir, arruinar e destruir. Que mitiga os excessos barrocos, lima as asperezas, risca os sentimentalismos e imprecisões … Assim, ele nos apresenta o espaço de contato: atritivo, convulsivo, fervoroso. Para os que estão chegando agora: a pedra de toque que vemos em contato com o negror da pintura automotiva faz com que voltemos ao básico abstracto. Estaríamos sempre formulando trajetórias e equações sem clareza lapidar? Mesmo que seja esse precisamente o tema a que mais nos diz respeito?

Por meio do olhar minucioso, por entre as suaves tapeçarias monocromáticas vermelhas, encontraremos carrapichos agarrados. Indesejáveis, daninhos, espalham-se rapidamente através de um desdobramento que depende de como abraçam, atracam, com espinhos que servem para semear. Parecem terem sido deixados como vestígios de um processo contínuo de atrito. O calor. A convulsão. O momento de difícil contato. De resistência. O momento quando o bronze esfria e que, por sua vez, aparece, uma vez mais, por meio da figura da resistente madeira: o vulcão inerme, nu, desmontado. Haveremos de reconhecê-lo em nosso entorno. Seu eco, esquemático e racional, conteudístico e insensível, se faz presente por entre a ebulição de seus omissos sinais de fumaça.

E, que tensão-resolução ele nos traz?

É na segunda estrofe, novo eco, que atingimos a plena potência. Quando vemos, novamente, a coluna de concreto com a delicada linha flutuante (tal qual lâmina meridional nervosa) que a secciona. Percebemos além da força daqueles que são e sempre serão. Entendemos que o ponto obscuro que nos permite ver, o sol situado eternamente abaixo do horizonte, a mancha cega que o olhar ignora, ilhota de ausência no seio da visão, eis o objetivo da busca e o lugar, o cerne da intriga. E só. 

  1. BORGES, Jorge Luis. Fervor de Buenos Aires. Parafraseado do prólogo escrito pelo autor na edição de Emecé Editores de 1974.  
  2.  BLANCHOT, Maurice. O Livro por vir. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 236
  3.  FAULKNER, William. O Som e a Fúria. Tradução Paulo Henriques Britto. São Paulo: Cosac & Naify 2004. p. 331