Exercício de Divisão
A exposição Exercício de Divisão que Marcius Galan apresenta na Galeria Francisco Fino, com curadoria de Inês Grosso, funciona a dois impulsos que se ligam e acompanham o espaço da galeria. A exposição articula um conjunto de obras que dialogam entre si, criando uma instalação de grandes dimensões na primeira sala, e um conjunto de pequenos ensaios na segunda sala. Em ambos os casos, estamos perante peças que podem surgir como apontamentos individuais mas que, numa relação conjunta, respondem à dimensão do local que ocupam.
Marcius Galan coloca-nos perante um trabalho que indaga os limites da percepção e que ensaia uma nova organização do espaço. O seu trabalho assenta na relação com o observador, ou na forma como ele apreende as obras e como, em torno delas, se movimenta. Gerindo, simultaneamente, o espaço de cada obra, o espaço da exposição e o espaço da galeria. O exercício de divisão a que o título se reporta está, assim, naquilo que o observador perspectiva em cada peça, nas duas metades da sala principal e, também, na articulação entre esta e a segunda sala, que difere em escala e ambiente.
Na primeira sala existe uma subtil mudança na coloração do pavimento e das paredes que, agarrando o todo, simula um espelho e remete as obras para o registo de uma intervenção conjunta. Aqui, a instalação desenvolve-se em torno da ideia de ilusão e apoia-se na sugestão de um reflexo que torna o espaço simétrico. Paralelamente, cada parte finge algo em si mesmo, seja pelo posicionamento que adquire, trabalhando a ideia de trompe-l’oeil; seja pela materialidade que assume, brincando com a percepção do visitante. Veja-se, a título de exemplo, as barras de ferro que pendem das vigas da cobertura, simulando o peso e a ductilidade de uma folha de papel.
Na segunda sala apresenta-se um conjunto de fotografias e pequenas esculturas que surgem de forma autónoma, mas que, ainda em torno da simetria e da subtileza da percepção, contextualizam a intervenção e reforçam a parcimónia das soluções encontradas. Cada uma sugere, de forma simples, elementos tão singelos como uma linha no pavimento ou uma sombra na parede. De modo delicado e cuidadoso, cada uma desenvolve a inclusão da dúvida e a incerteza no olhar, sendo curioso perceber como, com uma manifesta economia de meios, se gera um resultado de expressiva intensidade.
Dir-se-ia que a exposição procura tirar partido da especificidade da galeria, querendo abarcar o local como um todo. Porém, se na primeira sala essa ambição é cumprida, articulando paredes, pavimento e cobertura como suporte da intervenção, na segunda sala a maioria dos trabalho remete-se às paredes e a uma apresentação mais convencional.
O espaço é interveniente e gravita entre a dimensão objectual que cada peça tem (o que a matéria induz), a dimensão cénica que a exposição dita (a posição de um lado ou do outro do reflexo) e a dimensão arquitectónica que a galeria demarca (na amplitude do compartimento maior ou no recato da parte mais pequena). Mas tudo é activado com a presença do espectador que, gradualmente e de forma cúmplice, deslinda a exposição.
Dir-se-ia ainda que, na forma como essas relações são geridas, perpassa um subtil sentido de humor que boicota o lado esquemático da intervenção. Assim, ao percorrer o local percebemos que a seriedade que dita a posição dos elementos, desdiz-se pelo sofisma que neles reside. Como se o extremo rigor de cada peça se relativizasse perante o boicote das evidências, ou perante a dúvida que cada uma fomenta. Este é um processo inteligente e sensível, onde a dualidade entre a realidade e a ficção, entre a seriedade e o humor, ou entre a geometria esquemática e a surpresa do encontro, torna a nossa experiência num deambular lento e prazeroso.
Marcius Galan ensaia uma manipulação da matéria e do espaço que, pela curiosidade, surpresa e humor, indaga a certeza daquilo que damos por adquirido. Recorrendo ao observador e à sua experiência da exposição, o artista questiona a ideia de verdade. Essa poderá ser uma acção política que destabiliza o que é seguro, mas será sempre, também, uma envolvente exaltação da condição humana, na sua busca pela surpresa e pelo encanto.