Risco de Arte
Uma obra é concomitantemente muitas coisas: é um processo, é um evento, uma negociação, um produto, uma imagem.
O que um prêmio instaura é um valor: a possibilidade de sanção da obra como imagem, sob a autoridade do nome do artista agora inscrito na instituição; esta crítica é dispositivo assemelhado: cria o mito do valor a partir de uma noção vagamente explicativa, bastante afeita ao século 18.
Ao associar-se estes elementos, obra, prêmio e crítica indica-se a presença de uma instituição em operação. A obra torna-se formulário que permite participar da instituição, e também imagem da obra e da própria instituição.
A contemporaneidade se caracteriza pelo reposicionamento da arte, dessa condição privada e privatizante sob a instituição arte, em uma ciência ética que lida com a dimensão obra/imagem/economia/instituição. O problema que se arma ainda é aquele indicado por Walter Benjamin: faz-se política da estética ou estética da política? O que percebe-se sintomaticamente na contemporaneidade é que não é mais possível considerar imagem em condição de pureza estética ou ética. A imagem hoje é inescapável em sua condição paradoxal. A imagem pode ser radical ou reacionária, não há solução nem forma que universalmente deem conta do problema artístico.
As obras de Rodrigo Braga, Marcius Galan, Matheus Rocha Pitta e Thiago Rocha Pitta presentes na exposição do prêmio PIPA 2012 abordam tais questões segundo estratégias diversas. Respondem, assim, não apenas aos problemas históricos do objeto de arte e sua experiência, mas aos problemas da instituição e da imagem, observadas como economia ou ainda sob o véu da teoria.
O trabalho de Galan apresentado no MAM se caracteriza por adotar problema claramente conectado com a tradição conceitual. Nele, a relação entre obra e imagem é problematizada a partir de uma recusa. De fato, não se tem acesso à obra tal como pensada classicamente, pois sua suposta iconicidade é substituída por dispositivo que documenta sua existência contratualmente. A obra, assim, é indicada via texto objetivo. Não existe mais pretexto de interioridade sensível, de processo, não se endereça a percepção, nem o corpo. Recusada a transformação da obra em imagem, resta a obra em pura exterioridade, como consideração de uma questão econômica. Exibe-se o contrato, e a partir de seu estabelecimento, diferentes cores marcam cinco vias da obra, dedicadas ao artista, ao crítico, ao público, etc. Revela-se nessa exterioridade material sua origem em uma análise de teor marxista; ela é agora sua estrutura conceitual. Resta à obra denunciar pragmaticamente os agentes que articulariam perversamente tal economia da imagem e do espetáculo, tornada problemática de classe.
O trabalho de Matheus Rocha Pitta parece evidenciar as relações escamoteadas entre o minimalismo e o conceitualismo. Dois cubos nos quais se empilham caixas de leite são apresentados sem que tenhamos acesso a seu interior. Tudo que sabemos é a indicação dada por sua “ficha técnica” que declara a data de vencimento de cada caixa. E mais: pode-se saber que as caixas de um dos cubos foram esvaziadas, embora isto não seja declarado pela aparência das caixas. As coisas valem, assim, pela indicação incompleta de seus significados, e dessa indicação, de fato, é que reverberam significados que relacionam a recusa – a impossibilidade mesmo de representar – ao problema político do apresentar. A data de expiração do leite, por exemplo, é a do fim da exposição. Ainda, entre as caixas observa-se uma tímida forma. Uma caixa de leite aberta é apresentada em relação misteriosa com uma imagem da produção do leite: ambas estão incrustradas em cimento, apresentando-se como coisa obsoleta, como resto. Parecemos ser confrontados ao fazer de origem do leite. Em vez do execrável líquido recomposto industrialmente, ou daquele leite original que saiu de uma vaca, há apenas cimento. A única possibilidade da arte é verter cimento, o leite azedo da imagem que a tudo superficializa. O problema de uma economia do sacrificial é conectado com o da indiscernibilidade perceptiva entre imagem e obra, digamos, num raciocínio próprio das Brillo boxes de Warhol tal como lidas por Arthur Danto. Qual o papel da forma, qual o papel da imagem hoje? A imagem do centro dos cubos parecer declarar a futilidade de tentar-se encontrar uma interioridade da obra, seja formalmente, seja na dimensão cultural. Antes, o que se apresenta com mais força é introjeção da teoria no processo de formação. O conceito mesmo de “origem” é denunciado como esmagado sob o peso de uma economia na qual o sacrifício não aparecerá como doação, mas como desperdício.
Thiago Rocha Pitta apresenta um trabalho que também aparece como articulação espacial – um vídeo nos mostra material que escorre entre pedras lentamente. Sua cor quente imediatamente nos remete a processos orgânicos; há contraste em relação às pedras sobre as quais escorre. Em frente a esse vídeo há duas esculturas decididamente cinzas, que parecem ser produzidas a partir da imersão de tecido em concreto. Resultam formas fixadas que remetem a um gesto. São presença física concreta, e no entanto, também parecem ser planejamento que compõe uma determinada relação com o vídeo. Elas se apresentam agudas, recusando o chão e a condição imanente, e no entanto também descortinam algo que está além. A escala do trabalho é claramente antropomórfica, o que causa certo problema considerada a arquitetura do museu – nem sempre essa heterogeneidade que caracteriza a obra aparece como tal: seria preciso manter sua tensão. No entanto, fica evidente que esse drama entre cores, que o processo lentamente orgânico e tectônico e seu avesso, o gesto humano que forma, são buscados.
O trabalho de Rodrigo Braga lida com a representação sem gesto de recusa ou timidez: ao contrário, performances e naturezas-mortas são decididamente apresentadas; seu trabalho tem como clara questão a encenação da relação contemporânea entre homem e natureza, e entre vida e morte. Seu trabalho parece lidar tanto com o registro de algo que é efêmero, quanto com a fotografia como auxiliar na construção do tableau – composição, corte, profundidade, ponto de vista, transparência.
Parece não haver em sua obra questionamento em relação à dimensão ética da produção de representação, mesmo quando animais são incorporados cruelmente a suas performances e fotos. Consideraria, assim, sua obra como puramente pessoal, em sua subjetividade e imaterialidade, declinando da consideração econômica do impacto de sua circulação, de sua valoração? Seja como for, a contrapartida que nos oferece é considerável, na medida em que não nos interessamos como espectadores pelos problemas internos ao campo da arte como conhecimento, e sim por sua experiência. Desejamos a potência da imagem como potência da arte – potência de vida, potência da criação, potência simbólica, sem cabresto. Rodrigo corre o risco ético em prol da estética, digamos. Considerado tal impasse do qual toda arte contemporânea compartilha, chamaríamos a esse de risco de arte.