Seção

Rodrigo Moura
Seção, Cosac e Naify, 2015

No labirinto

Desde o início dos anos 2000, Marcius Galan vem construindo uma sólida e diversificada obra, que inclui instalação, escultura, objeto, desenho, vídeo, fotografia e projetos conceituais. Sua linguagem, austera e precisa, e ao mesmo tempo intrigante e aberta a múltiplas interpretações, suscita leituras que tendem a aproximá-la de um conjunto de referências da história da arte do século xx – do neoconstrutivismo brasileiro do meio do século à arte americana da década de 1960. Suas matrizes mais diretas, porém, se encontram na experiência anônima das grandes cidades, nos espaços descaracterizados que tendem a se multiplicar indefinidamente, tornando nossa percepção sobre eles confusa, como se vivêssemos em uma espécie de estado de anestesia no qual os lugares já não se diferenciam. O labirinto, assim, é uma boa metáfora para entender seu trabalho. Presos nesses espaços, sem noção de tempo ou de vida exterior, somos a todo instante provocados pela aparição de suas obras, que interrompem e interpelam momentaneamente nossas certezas. A comunicação visual e a arquitetura são os códigos de que o artista se aproxima para fazer essas operações. O espaço, lato sensu, é seu principal assunto.

Seção é a primeira monografia sobre a obra de Galan e tem como ponto de partida a ideia de fragmento, extraída da própria obra do artista. Assim, antes de propor uma teoria geral de todo o trabalho, pretende-se aqui uma abordagem parcial, formada por aspectos específicos dessa prática, seções extraídas um tanto arbitrariamente que enfeixam grupos de trabalho de acordo com interesses específicos. 

Um ensaio de minha autoria foi seccionado e distribuído ao longo do livro, de modo a criar diferentes capítulos e blocos de imagens temáticos. Essa lógica se inspira nas obras de Galan, que se desdobram em topologias, fatias, seções, linhas, planos, vetores, vazios. Além do ensaio principal, uma entrevista concedida a Kiki Mazzucchelli, antiga e constante interlocutora do artista, procura dar conta de aspectos decisivos de sua obra, ao revisitar trabalhos de início de carreira e apontar para temas como a funcionalidade e a subversão dos sistemas de representação, que atravessam toda sua obra. Um texto de Manuel Cirauqui, “A área de Marcius”, observa o ateliê do artista e suas ferramentas como modelo para a compreensão de sua linguagem.

Esquematicamente, pode-se dizer que os capítulos deste ensaio estão divididos em quatro polos de interesse de Galan – design, arquitetura, escultura e desenho –, embora obviamente esses assuntos se sobreponham uns aos outros e interpenetrem a obra e os textos sobre ela. Alguns deles são batizados a partir dos títulos dos trabalhos, os quais são examinados de forma mais detida nos respectivos textos, embora os assuntos abordados possam servir como reflexão para obras não necessariamente citadas. 

“Área comum”, o primeiro deles, analisa o uso de elementos encontrados no desenho industrial, notadamente na sinalização dos espaços semiprivados de convivência. A partir da apropriação desses elementos, Galan cria esculturas que muitas vezes nascem da confluência entre elementos tri e bidimensionais. Ali, analiso mais detidamente um grupo específico de obras, Isolantes, que obedece justamente a esse princípio. A relação do artista com o absurdo também está em pauta nesse texto. 

Esmiuçando o mise-en-scène desses objetos, em “Planos de fuga” revisito a exposição homônima para a qual convidei Galan a participar e para a qual ele criou uma série de intervenções nos espaços de circulação. A lógica do site-specific é a grande articuladora desse bloco, o que nos leva a pensar menos na construção intrínseca do objeto e mais na maneira como ele se apresenta. 

Em “Seção diagonal”, o foco recai sobre a obra de mesmo título, de 2008, uma das mais reproduzidas e reconstruídas do artista. Nosso esforço é a compreensão do lugar do vazio em sua obra, um vazio escultórico. 

Por fim, “Desenhos…” analisa a vertente que ocupa papel especial e permeia toda a prática do artista. A noção do “desenho no campo expandido” é colocada em funcionamento, situando Galan como herdeiro de artistas que renovaram esse campo a partir dos anos 1960 em diante, como Mylan Grigar, Ivens Machado e Channa Horwitz, para nomear alguns.

Na entrevista, Kiki e Galan se debruçam sobre um trabalho, Sino [1998], de onde podemos extrair uma matriz de pensamento para a obra posterior do artista. O que está em jogo é o fracasso da funcionalidade, expresso pelo potencial choque radical entre dois materiais que, caso se encontrassem cumprindo a função designada pelo objeto, o destruiria. Esse princípio, se expandido para além da natureza específica desse objeto, se divide em vários outros que se multiplicam ao longo de sua obra. Podemos encontrá-lo nas demonstrações matemáticas falhas que habitam simultaneamente o cânone da abstração geométrica e as calçadas mal emendadas de São Paulo; no vidro inexistente de Seção diagonal [2008], tão mais presente quanto mais ausente; no sentido desorientante da sinalização fantasma de Planos de fuga, entre a clandestinidade e a alucinação. 

Ao longo de todas essas seções, ecoa o estampido surdo deste golpe de sino.

 

Área comum.

 

As duas palavras servem aqui como primeira aproximação ao trabalho de Marcius Galan. A expressão é emprestada do mercado imobiliário e refere-se às dependências de uso compartilhado nos condomínios: acessos externos, pátios, corredores, salões de festas, playgrounds, portarias. Evoca uma sociabilidade hipercodificada, mediada por aparatos arquitetônicos e de comunicação, denotando uma espécie de arremedo de espaço público no interior do espaço privado. Os objetos que nele encontramos são demarcados; os espaços, muitas vezes delimitados por faixas pintadas. Vazias, ociosas, melancólicas, as áreas de circulação ganham adornos, mobiliário e vegetação que pouco ou nada cativam nossa atenção, que dirá servem a alguma função de fato. Capachos, bruscas emendas entre materiais de piso e de parede, passagens fechadas por portas de vidro sempre trancadas, puxadores metálicos inúteis, câmeras de segurança de uso misterioso, caixas contendo artefatos elétricos, dezenas de interruptores, detectores de presença e de fumaça. Grades aparecem por toda a parte, assim como placas e espelhos, corrimãos e rodapés, sancas e sanefas, frisos e marcos. Um longo et cetera.

A experiência nesses espaços, o contato com esses materiais, elementos e objetos informam a arte de Marcius Galan. Sua linguagem é influenciada pela estética supostamente inexpressiva apreendida nessa vivência, tomando-lhe emprestados aspectos visuais e conceituais. Muitas vezes suas obras são “simulacros” desses mesmos objetos, e assumem feições quase idênticas a dos originais, cabendo a sua lógica de aparição, em projetos site-specific, a torção conceitual que as distinguem daqueles. Outras vezes, elas repetem técnicas construtivas, aspectos formais e materiais para lhes aplicar pequenos golpes cognitivos, que lhes corrompem a função mas preservam seu caráter positivo. Em ambos os casos, seu ponto de partida é a certeza de que esses espaços inspiram, levando o espectador a um estado de negociação entre mimese e epifania. A palavra grega phaíno¯ está na origem desse último termo, mas também na etimologia de uma palavra que nos é mais familiar: “fantasma”. As obras de Galan nos fazem crer para depois descrer – para depois crer de novo – na veracidade desses objetos, primeiro como coisas depois como obras de arte. 

Um amplo conjunto de suas obras (Isolantes, desde 2006) se caracteriza pelo uso de um elemento em comum: uma faixa amarela de delimitação. Esse motivo, extraído de pinturas de sinalização e de áreas de segurança, pode assumir pelo menos duas feições diferentes: aplicado diretamente sobre sólidos de concreto, similar aos pré-moldados conhecidos popularmente como gelos-baianos e usados como balizadores de trânsito, ou como fitas cortadas e dobradas em chapas de aço, que lhe conferem uma mínima espessura, garantindo a rigidez que permite desenhar no espaço com esse elemento originalmente bidimensional. Usado a princípio para unir e delimitar o espaço de determinados objetos e para assinalar determinadas funções, encontrado tanto no meio urbano quanto nas “áreas comuns” dos espaços privados, esse elemento deflagra uma lógica um tanto ambígua na obra de Galan. Ao mesmo tempo que denota um interesse, ou, pode-se dizer, quase empatia, pela linguagem vernacular da sinalização, ele sempre implode o princípio pelo qual essa mesma linguagem opera. As obras parecem antes inspiradas na falência desse princípio do que em sua eficácia. Ou seja, quando vemos essas faixas metálicas, pensamos mais nas faixas que são deixadas para trás depois de removido o objeto que demarcavam, isto é, a famosa fita de sinalização amarela que não serve para sinalizar nada, mas que nem assim perde sua eloquência ao chamar a nossa atenção para o absurdo da situação. Ao delimitar objetos tão díspares quanto um conjunto de cadeiras de design escandinavo, um engradado de refrigerante, blocos de concreto usados na construção e, como não poderia ser diferente, o vazio, em diversas configurações geométricas no chão, na parede ou em ambos, essas obras parecem não apresentar conflito entre a certeza e o absurdo. Cabe ao artista justamente apontar esse paradoxo, habitá-lo sem conseguir desfazê-lo. As fitas se articulam no espaço como uma espécie de demonstração formal, da debilidade das certezas que as situações descritas por esses objetos insistem em nos transmitir. Assim, toda banalidade, nessas esculturas, está embebida em uma essência de absurdo. Elas operam sobre o banal, mas o banal também opera sobre elas – existe uma comunhão com os labirintos kafkianos, porque a sua estética nunca está longe dos códigos da burocracia e da convenção. A escolha do amarelo não é fortuita. Uma rápida busca pelo Google nos explica que nossa visão periférica detecta o amarelo até 1,24 vez mais do que outras cores fortes, como o vermelho. (Agora, enquanto escrevo, recém-instalado num condomínio de classe média alta na zona  sul de Belo Horizonte, enxergo a uma distância de mais de quinhentos metros um grupo de trabalhadores no alto de um prédio, usando capas de chuva amarelas.)

O interesse pelas grandes cidades e pelas formas de cultura material e de convivialidade que Galan engendra não é exclusivo de sua obra. Quase aleatoriamente podemos escolher três artistas de sua geração trabalhando no mesmo contexto geográfico, ou seja, a cidade de São Paulo, para ampliar a compreensão dessa produção: André Komatsu, Cinthia Marcelle e Marcelo Cidade. Para Marcelle, o que mais chama a atenção são as construções que surgem no contexto das relações de trabalho: os baldes, os rolos de tinta e as ferramentas que povoam temporariamente nossa paisagem habitacional se transformam, em sua obra, em construções estudadas com algo de compaixão por seu caráter transitório, e um requinte de composição que parece lhes redimir de sua condição fugidia original, fixando-as de maneira propositadamente artificial em seu novo estado de arte. Para Cidade, há um fascínio quase documental pelas formas marginalizadas de vida das grandes cidades, as quais ocupam o centro de seu interesse. A lógica da exclusão e as formas de resistência a ela se materializam em gestos e rastros, como paredes queimadas, vidraças estilhaçadas e áreas de pichação, que são a marca de suas esculturas. Komatsu, por sua vez, transforma a condição “em obras” numa espécie de técnica artística, criando superfícies de tijolo aparente, paredes não acabadas, feitas diretamente no espaço, construções em colapso cobertas por telas de proteção, alambrados e cercas. A célebre frase de Claude Lévi-Strauss no início de Tristes trópicos, segundo a qual no Brasil tudo parece que ainda é construção e já é ruína, logo vem à mente quando entramos em contato com o seu trabalho. 

Ao lado das obras desses artistas, a de Galan a princípio parece ser a menos diretamente crítica. Ela se desenvolve reagindo a estímulos aparentemente idênticos aos dessas obras citadas acima, mas o resultado é muito diferente. Sua dicção tem uma calma e um silêncio, algum mutismo que de início poderia ser confundido com hermetismo. E é justamente nesses intervalos de nossa percepção, quando ansiamos por ser realmente iludidos mais do que por entender alguma coisa, que ela parece ser mais eficaz. Talvez por isso, como forma de afugentar esta dúvida, nossa tendência imediata é associá-la à tradição. Os mais apressados apostam no minimalismo americano como sua principal fonte, e não estão exatamente errados por ver na obra de Galan alguma afinidade no uso dos materiais construtivos industriais, por exemplo. Outros acham que é na vanguarda construtiva brasileira que reside sua filiação, o que também não é inteiramente falso, visto que o interesse pela geometria é uma constante (mais adiante, explorarei seu interesse pelo vazio à luz da obra de Franz Weissman). Mas também não devemos esquecer que há um certo nível de estranhamento em seu trabalho que transcende esses parâmetros. 

Quando perguntei sobre experiências decisivas em sua formação como artista, Galan me contou que ficou muito impressionado quando viu as esculturas do americano Robert Gober. A princípio, achei essa resposta estranha, concluindo que ela se referia antes a algo circunstancial e biográfico do que a propriamente uma reverberação em seu trabalho. Logo depois lembrei que uma referência recorrente em sua obra é Uri Geller, um israelense misto de paranormal e de showman, conhecido no Brasil dos anos 1970 por consertar relógios e entortar talheres no programa dominical Fantástico, da rede Globo. Essa lembrança de Geller, que até serviu de título a uma escultura do artista, me fez entender melhor a menção a Gober. Os feitos de Geller, assim como a obra do americano, nos fazem ver as coisas como se elas nos fossem extremamente familiares e ao mesmo tempo profundamente estranhas. O interesse pela ilusão equivale a um igual pelo transitório, a atenção ao banal se equilibra com a atenção ao absurdo. Curiosamente essa associação chegou a uma ressonância fonética, gerada pela repetição da consoante inicial: Galan, Gober, Geller.

À medida que essas últimas ideias se tornam mais familiares para mim, estranhamente compreendo menos o que o artista entende por “área comum”. Meu palpite inicial, relacionado aos condomínios das grandes cidades, não deve estar de todo errado, nem de todo certo. Há muitas outras vertentes relacionadas a operações matemáticas, a áreas de interseção entre dois conjuntos que só existem em relação um ao outro, há a inversão em ordens cartográficas e sistemas de representação, há uma insistência no duplo em seu trabalho, que também podem explicar o significado do termo. Talvez a resposta esteja na área comum que existe entre a obra e o espectador, onde o sentido se faz tenuemente. Talvez este texto, assim como as obras de Galan, não seja mais do que mera aparição de algo que já existia em outro lugar.

 

Seção Diagonal

A primeira vez que vi Seção diagonal [2008] foi em sua primeira mostra. A antiga sede da Galeria Luisa Strina, na esquina das ruas Padre João Manuel com Oscar Freire, no bairro paulistano dos Jardins, tinha um terraço que raramente era utilizado pelos artistas. Para chegar a esse terraço, entre a escada e o a área externa, havia uma pequena sala ainda menos funcional, que era antes uma passagem do que um espaço de exposições. Em sua terceira individual na galeria,1Marcius Galan criou para essa sala uma obra que tornaria-se de certa forma um paradigma de sua linguagem, tanto por sintetizar uma série de seus interesses e preocupações, quanto por ser uma das mais populares entre o público.

Seção diagonal não é um objeto escultórico no sentido tradicional, mas antes se constitui do próprio ambiente dentro do espaço da galeria. Sua relação com a escultura é, assim, aquela que passa pela redefinição da relação entre objeto e espaço. Muito da maneira como entendemos a escultura ao longo do século xx pressupõe ser ela menos imitação do espaço do que propriamente ser espaço. Assim, desde os ready-made duchampianos aos earthworks, passando pelo não objeto neoconcreto, uma relação mais tensa e problemática entre espaço real e virtual, entorno e obra, vem contaminando o objeto escultórico. Em Seção diagonal especificamente, o artista se vale de elementos e materiais básicos, os mesmos encontrados em qualquer sala de exposição: paredes, teto e piso; tinta, luz e cera. Contudo, ele propõe um deslocamento em nossa percepção ao sugerir a presença de um elemento que, afinal, não existe no espaço. A obra acontece na transformação do espaço pela inclusão de uma linha diagonal que divide a sala e cria um campo de cor para além dessa linha. Ela se mistura à sala de exposição – causando, por isso, nossa confusão. Onde pensamos haver um vidro, há na verdade um limite óptico deflagrado pela experiência ilusionista, provocada por um fenômeno físico. Depois de experimentá-lo uma vez, resta a lembrança do momento inicial, cuja repetição é, imediatamente, impossível. “É um silêncio que subitamente grita e se faz ouvir.”2

Num primeiro exame, Seção diagonal insinua uma relação com algumas obras do movimento Light and Space, espécie de versão californiana do minimalismo, com seus campos perceptivos de cor e materialismo refinado.3 Porém, há outro aspecto da arte dos anos 1950 e 1960 que me parece mais produtivo na leitura dessa obra, que é o vazio, particularizado aqui pela óptica da obra do escultor austro-brasileiro Franz Weissmann. Ao criar seu Cubo vazado, em 1950-51, Weissmann inaugura uma importante vertente na linhagem construtiva brasileira, na qual as relações do virtual ocupam o papel principal, trazendo o desaparecimento do material e aprofundando um viés de interpretação ontológico e político. O vazio é o que não é, mas também o que ainda está por vir, seja na sociedade em formação seja na imaginação do espectador emancipado. O vazio ocupa um espaço importante na obra de Galan por seu interesse pela economia e pela matemática, vistos na subtração como operação e no zero como figura. Em obras de natureza material muito distinta de Seção diagonal, ainda interessado em subtrações, Galan soma sua voz a uma linhagem brasileira que vê arte no dinheiro.4 Dos Zero Dollar[1978-84] e Zero Cruzeiro [1974-78] de Cildo Meireles às colagens com cédulas de Jac Leirner, Galan encontra no círculo de uma moeda um ponto de inflexão. Seja atirando-as ao chão (Distância variável, 2014), esmerilhando-as (Eclipse, 2013), ou usando-as para sustentar complexas montagens semelhantes a móbiles (Imóvel, 2013), o artista as reduz a formas geométricas circulares. A ilusão, aqui, não é de óptica. Estamos nos meandros da abstração da economia, equiparada àquela da arte. O vazio é o resultado da incerteza, e a sensação de andar sobre dinheiro tem algo de ameaçador. Em tempos de valores instáveis, de câmbios flutuantes, lucros bancários esmagadores, de um dinheiro que não é mais que ilusão, onde vai parar nossa crença (na arte e no dinheiro)?

Vejamos o que diz Frederico Morais sobre o vazio de Weissmann: 

O Cubo vazado (que na verdade deveria ser chamado de “cubo virtual”) é, de fato, uma obra inusitada pelo contraste que o artista criou entre aquilo que, nela, é real, tem matéria, peso, contorno, que tem tactilidade, enfim, e aquilo que é imaterial, impalpável, que é virtualidade pura. Esta obra ajuda a esclarecer, definitivamente, a diferença entre o simplesmente vazado (transpor a massa, ato mecânico) e o vazio. Este é algo mais sutil: o espaço nasce, emerge, desabrocha, manifesta-se virtualmente, mas, quando o percebemos, impõe-se de tal maneira que não conseguimos mais esquecê-lo.5

Desde sua primeira apresentação, Seção diagonal foi montada quase uma dezena de vezes, às vezes em mais de um lugar ao mesmo tempo, sempre com configurações ligeira ou radicalmente diferentes, incorporando as informações e os desafios singulares de cada espaço. Embora eu não tenha visto todas essas montagens, conhecendo a maior parte delas apenas por documentação fotográfica, a comparação entre elas oferece novos elementos para continuar sua leitura. A relação dos materiais no espaço, conquanto bem estudada e precisa, é relativa e só acaba de ser compreendida nos ajustes finais de montagem, não sendo possível determinar de antemão se funcionará ou não. O caráter provisório da obra de Galan soma-se aqui aos já mencionados interesses pelo ilusionismo, o virtual e o vazio. Numa de suas versões, a obra se transformou inteiramente, ocupando uma quina de parede para formar um triângulo de cor diferente (SP-Arte, 2012), numa outra, numa diagonal com profundidade bem menor (The Museum of Fine Arts, Houston, 2009). O contraste entre o efeito desse vidro e a fluidez da forma de sua aparição significa uma atualização poderosa que a obra de Galan acrescenta à história do vazio na arte brasileira.

Nessas muitas montagens, anedotas são coletadas. Em Inhotim, onde desde 2010 está em exposição permanente, causou pânico na equipe de manutenção, que teria que limpar aquele vidro constantemente para manter a contundência de seu efeito. Em algumas outras montagens, as instituições sugeriram que fosse proibido que as pessoas atravessassem o “vidro”, para não atrapalhar a experiência de quem chegasse depois ao espaço. Refutada energicamente, essa última sugestão nos fez lembrar que para todo ilusionismo deve haver o anti-ilusionismo. Para todo vazio, um cheio nas bordas.

 

Desenhos

Desenho porque é feito com a mão. Desenho porque é nesta escala: da mão ao lápis, do lápis ao caderno, do caderno à mesa. Desenho porque é a feitura durante a etapa projetiva, e essa etapa é fundamental neste trabalho. Desenho porque ele estabelece um diálogo direto com a escultura, e mais ainda com o espaço. Porque o papel aguenta tudo, e o espaço, bem, não sabemos o que ele aguenta enquanto não saímos do papel. Mas tampouco sabemos o que queremos do espaço enquanto não começamos no papel. Desenho porque ele é um laboratório de ideias. Desenho porque adicionar matéria ao papel pode se tornar uma tarefa sisífica, mais ainda quando essa adição vem acompanhada de uma subtração proporcional, num processo quase sem fim. Desenho porque ele gera uma materialidade: o papel, o grafite e a borracha são matéria-prima desse trabalho, e se desdobram para além de sua função sintática convencional. Desenho porque identificamos nele os elementos fundamentais da armação do vocabulário geométrico: o ponto, a linha, a área, mas também a repetição, a seriação, os duplos, os cheios e os vazios. 

Desenhos… desenhos… desenhos… Cheios de potência ontológica, o menos definidos possível, os desenhos atravessam a obra de Marcius Galan. As imagens que acompanham a entrevista de Galan a Kiki Mazzucchelli foram extraídas dos cadernos de anotação do artista, e representam projetos para esculturas e instalações. Ali o desenho é uma espécie de oficina para o artista, ou ainda um ateliê móvel, no sentido de uma prática que define sua produção, mas que nem sempre ocupa o primeiro plano na visibilidade, na qual espaços e objetos são os protagonistas. Nas imagens reunidas aqui, pode-se identificar uma série de usos e papéis atribuídos ao desenho.

A primeira delas seria a de anotação. O desenho é antes de tudo um aide-mémoire, uma maneira de registrar uma ideia, mas também de entender suas dimensões físicas para além de si mesma. Assim, os estudos são uma extensão da ideia, e podem até incluir textos à guisa de notas e instruções, mas já pressupõem alguma presença física no mundo e uma execução sobre o papel do que, posteriormente, deixará de ser projeto para se tornar coisa. De anotação a projeto, etapas técnicas são agregadas, mas na elaboração da ideia pouca diferença é acrescentada de um a outro estágio.

Com base nesse primeiro postulado, podemos inferir relações entre o desenho e a prática tridimensional na obra de Galan. Aqui, o conceito é o de desenho no campo expandido1 que nos remete a uma exposição com curadoria minha de que o artista participou.2 Em Des(enho), um dos pontos de partida era pensar como os trabalhos dos artistas participantes traziam o desenho como questão de fundo, e não exclusivamente como meio. O desenho aparece como conceito, gesto e atitude. 

Inclinação à esquerda [2010], por exemplo, é, nas palavras do artista, 

uma construção desestruturada, desequilibrada e tombada para um lado, que traz o desenho de sua possível posição de equilíbrio. O desenho formado pelos arcos contra a pintura na parede possibilita que se reconstrua (mentalmente) uma situação que nunca existiu, a do equilíbrio, a do objeto em ordem.3 

A escultura, se é que podemos chamá-la assim, acontece justamente no encontro entre elementos tridimensionais e bidimensionais, sendo esta situação imaginária do objeto em estado de equilíbrio sugerida pelo rastro do movimento que o teria desequilibrado. Resultado disso, o desenho, rastro, é algo sem o que o trabalho não se completa.

Na mesma exposição, gesto e repetição surgem, assim como o vestígio e o resíduo, em desenhos que são construídos pela ação obsessiva de desenhar e apagar à mão livre repetidas vezes. Os motivos representados são um círculo e uma linha reta. O papel marcado pelo desenho e seu apagamento é emoldurado junto às aparas das borrachas utilizadas (Desenhos [linhas paralelas e tangente], 2011). As tentativas frustradas de construir essas formas primárias contam a história do desenho, embora a rigor ele não esteja lá. Galan prossegue: 

Nesse caso, o desenho é um espaço entre a ação e o trabalho final. Tanto o acúmulo de borracha quanto o papel que é esculpido pelo atrito guardam informações dessa ação, que se justifica e se fortalece pela repetição do erro.4

Galan iniciou o trabalho com o refugo das borrachas de apagar ao emoldurar os resíduos gerados por todas as borrachas usadas em sucessivos desenhos, ao longo de quatro anos.5Em etapa posterior, passou a se interessar pelo próprio material em estado original, e não apenas o refugo de seu uso. Datam dessa época experiências formais com esses materiais, em que borrachas inteiras ou semiutilizadas, além de barras de grafite, são arranjadas em caixas formando composições geométricas (Abstração instável, 2011; Composição apagada, 2013). Nos primeiros desenhos, fala-se de uma desmaterialização do ato de desenhar, reduzido a um rastro. Nos seguintes, trata-se de criar materialidade com os próprios instrumentos de trabalho. É revelador que o material de apagar tenha sido o principal instrumento nesses trabalhos de Galan, um artista para quem o vazio exerce papel tão fascinante.

Outras tentativas de dar novo corpo ao desenho incluem outros sentidos, como nos desenhos que o artista faz acompanhados do som de sua feitura (Intersecção, 2011). Dois desenhos quase idênticos, ambos contendo um círculo, são exibidos lado a lado, com um alto-falante abaixo de cada um. Os áudios têm duração muito diferente. No campo inferior direito, uma indicação por escrito dá a noção exata da diferença: enquanto um foi feito em quatro segundos, o outro levou dois minutos e vinte e dois segundos para ser concluído. Em que medida o desenho não é, também, uma questão de tempo?

Entre notas, projetos, traços, resíduos, ferramentas, sons, relógios e mapas, linhas e pontos, retas e círculos, o desenho retém, ao mesmo tempo, a urgência e a persistência que se pode apreender na obra de Galan e constituir um de seus pontos focais e uma de suas linhas mestras. Terminemos com a assertiva desafiante trazida por um dos seus títulos: Uma linha contém infinitos pontos [2011].