Reflexo e (des)engano
Marcius Galan expõe a Galeria Francisco Fino em Exercício de Divisão. Ou será o contrário? O artista brasileiro trabalha nos limites da percepção e a sua mais recente instalação em Lisboa, com curadoria de Inês Grosso, parte do espaço da galeria para ficcionar o seu reflexo.
A vontade de explorar a relação com a arquitectura do lugar surgiu desde logo quando curadora e artista começaram por discutir o contexto urbano da galeria e a natureza arquitectónica do edifício que a alberga, um antigo armazém de vinho e azeite. As relações de simetria do espaço serviram de mote para conceber a instalação central de Exercício de Divisão, que se duplica a partir do seu eixo longitudinal, sugerindo uma realidade espelhada. Galan conta-nos que começou por pensar como as peças que compõem a instalação poderiam concorrer para enfatizar a ideia de duplicação existente na forma arquitectónica da galeria. Dispõe as suas peças em relação aos planos que conformam o espaço, apoiadas, suspensas e assentes nas paredes, cobertura e pavimento. Uma nuance na tonalidade do pavimento e das paredes transversais demarca o eixo de divisão, a superfície do espelho. O reflexo que materializa é ficcional, mas releva algo novo sobre o que é real e concreto naquele espaço.
As diferentes peças que compõem a instalação e que aparecem duplicadas do outro lado do espelho, encerram em si outras ficções. O artista manipula luz, cor, textura e materialidade com engenho e rigor, criando momentos que desorientam a percepção, ficando por saber se o que vemos é reflexo, sombra ou pintura, linha ou superfície, borracha ou metal, vidro ou vazio. Para descobrir as subtilezas do seu trabalho há que abrandar e aprofundar a relação visual e física com o que nos rodeia.
O espaço é parte integrante da obra e o corpo também o é. Exercício de Divisão precisa de ser testado: cruzar o limite para comprovar que não existe, circular para apurar o desengano. “A experiência do espaço age no corpo e vemos o trabalho com mais sentidos,” explica o artista. Mas se em instalações anteriores, como a célebre Secção Diagonal (2008), Galan constrói uma ilusão espacial que é depois desmontada pelo visitante em movimento; em Exercício de Divisão o artista sugestiona uma realidade ficcional que requer um exercício criativo do visitante para a imaginar completa. Uma obra onde o artista abre mão do controlo total do mundo que cria, partilhando os seus engenhos com quem os queira exercitar.
O trabalho de Marcius Galan é um trabalho de simulação e ambiguidade, mas também de precisão e rigor geométrico. A prática constante do desenho e o domínio das técnicas de representação pictórica são fundamentais no trabalho do artista, que enquadra as suas instalações dentro da tradição da pintura, como tentativa de recriar e construir espaço. Relações estas que são também exploradas nos trabalhos de menor dimensão expostos na segunda sala da galeria, onde construção e pintura se completam.
Se o seu trabalho vive da precisão, também surge em reação a ela. “A ideia de precisão incomoda-me”, confessa o artista. As dúvidas de percepção que pretende levantar, assim como a exploração da noção de limite, de conceitos matemáticos básicos e de organização espacial, surgem sempre como tentativa de encontrar uma brecha na lógica da arquitectura, da matemática, da percepção, procurando introduzir um pensamento que é diferente do que aceitamos como lógico ou preciso. O artista procura constantemente encontrar equações e mecanismos que destabilizam ideais de precisão e de organização que tomamos como garantidas. “Há muita coisa que é tida com exata, precisa ou ordenada que muitas vezes é questionável”, afirma.
Na vontade de questionar o limite lêem-se, naturalmente, contornos políticos. Para Marcius Galan, qualquer tentativa de organizar o espaço tem implicações políticas. Esta correlação é direta e evidente na noção de fronteira, que o artista explora recorrentemente, mas Galan vê também a arquitectura como um elemento de demarcação no quotidiano: por um lado, criando uma relação de conforto e abrigo, mas por outro uma relação forte de controlo, de condicionamento. O artista explora estas associações em Exercício de Divisão, propondo que se reexamine a relação do corpo com a arquitectura e evidenciando como espaço e percepção são manipuláveis. O fascínio de Exercício de Divisão não está apenas na ardilosa simulação de um reflexo mas também na possibilidade de experimentar o seu desengano.