Salvo Engano
Salvo engano
Nesta exposição, as coisas são o que são, e nem por isso o que você vê é o que você pensa ver. Diante dos trabalhos de Marcius Galan, o observador é quase sempre induzido ao engano. Tende a ver vidros, em áreas delimitadas apenas com esquadrias e cor. Tende a ver sombras onde há desenho. Tende a ver fitas adesivas, maleáveis e elásticas, em chapas de ferro, a ver uma superfície contínua onde há lapsos e materiais distintos. De maneira geral, tende a enxergar situações interinas, casualidades, acidentes e danos onde só há cálculo e construção; onde o plano de ações é cumprido à risca, com precisão, seja na aplicação do acabamento industrial e estandardizado que caracteriza as peças do artista, seja na hora de golpear e arranhar a parede de uma galeria com uma pedra nas mãos, como se aquilo resultasse de um ataque súbito. Que sirva, então, de aviso àqueles que só acreditam vendo: nada aqui parece mais falho que a visão.
Não somente a representação é um dos principais procedimentos da produção de Marcius Galan, desde o início dessa trajetória, no final da década de 1990, como um dos mais importantes “motivos” de suas operações é imprevisível – o acaso, ele mesmo. Para dizer diferente: o artista costuma desenhar em superfícies e realizar suas peças tridimensionais, como as que estão presentes nesta exposição, a fim de imitar um acontecimento fortuito, contingente. Mas, sem dúvida,sua imaginação está atravessada pela história recente da arte; e, por consequência, nos espaços onde são apresentadas, galerias, museus, instituições culturais, suas peças reportam, com aparência ordinária, a um conjunto de visualidades distintivas de movimentos artísticos que tiveram lugar, ao longo do século XX, em diversas partes do mundo.
Na condição de imagem, ou pela constituição física, esses trabalhos remetemdiretamente às correntes construtivas: às formas simples e diretas das vanguardas europeias das décadas de 1910 e 1920 (suprematismo, neoplasticismo, Bauhaus), às investigações de linguagem – mais matemática ou mais fenomenológica – das vertentes concretas brasileiras que se desenvolveram no país entre 1952 e 1961 (arte concreta e neoconcreta), à escala do minimalismo norte-americano dos anos de 1960 e 1970, além dos processos e do caráter documental da arte conceitual, notáveis, também, a partir da segunda metade da década de 1960, e que se estendem pelos anos de 1970.
Ao mesmo tempo, as circunstâncias armadas pelos trabalhos de Galan sugerem a informalidade do dia-a-dia, a imprevisibilidade dos incidentes. Lembram e tomam de empréstimo aspectos e objetos comuns, por exemplo, em oficinas, tipo as marcas de uma sucessão de tentativas e erros ocorridos em um ateliê, uma marcenaria, uma serralheria, uma vidraçaria. Se não, remetem a elementos de fachada e da área comum de um estabelecimento comercial e de serviços. Ou, ainda, remetem à papelaria das mesas e balcões de uma repartição pública. Inspiram situações parecidas com as dos canteiros de obras, com partes do calçamento de uma cidade ou que envolvem as sinalizações do espaço urbano. Tudo isso em condições aparentemente provisórias, malogradas ou vandalizadas, sugestivas de fracasso, confusão e violência.
Não é à toa, portanto, que instrumentos de organização, quantificação e representação gráfica são tão frequentes nessa produção: prateleiras, divisórias, molduras, placas e letreiros de comunicação, bandeiras, mapas e moedas, além de uma sorte de materiais que se referem a uma ideia genérica de burocracia. Salvo engano, a sintaxe do trabalho surge de ideações sobre como mover encontros e desencontros entre as esferas da arte e da vida mundana; sobre como cruzar sinais distintivos da produção e da circulação de materiais de uma e de outra instância, do ateliê e dos espaços expositivos, da oficina, do escritório e da cidade.
Por meio de ações assim, a obra parece inverter o sentido e os valores atribuídos, sob a primazia da racionalidade técnica, a princípios de ordenação e à ausência de uma lógica funcional e produtiva – ou, daí por diante,à normalidade e ao desvio, à regulação e à transgressão, à seriação e à unidade, ao projeto e ao improviso, à norma e à ruptura. Desse baralhamento de significações e limites (afinal, o que seria, aqui, regra e o que seria exceção?) irrompem, também, a comicidade e o riso do trabalho. Um trabalho que faz rir com erros de percepção, com ilusões, com certezas precipitadas, tanto quanto parece rir da própria condição de objeto pronto e defeituoso, concluído e acabado – mas “acabado” no sentido de algo imperfeito, que se danificou, que está ali virtual ou parcialmente ausente, insistindo não para que vejamos nele um vidro, ou arranjos temporários, ou acidentes. Insistindo, isso sim, na sua capacidade de gerar dúvidas. Ou não?
José Augusto Ribeiro