Exercício de divisão, Galeria Francisco Fino, 2018
Exposição individual
Galeria Francisco Fino, Lisboa, PT, 2018
Nos últimos tempos, tenho-me dedicado à releitura de alguns dos mais notáveis ensaios escritos pelo historiador de arte Victor Stoichita. Entre eles, Breve História da Sombra surge como um livro que é particularmente pertinente no contexto do novo projeto que o artista brasileiro Marcius Galan concebeu para a Galeria Francisco Fino em Lisboa.
Publicado pela primeira vez em 1997, o ensaio analisa o percurso de um tema primordial da cultura visual do ocidente, mas também da história da arte e das imagens — a representação e o significado das sombras. No primeiro capítulo, Stoichita recorda Plínio o Velho e cita duas lendas da sua História Natural, que passo a transcrever.
A primeira fala-nos das origens da pintura:
«A questão das origens da pintura é obscura. […]. Os egípcios afirmam que esta arte foi inventada por eles, seis mil anos antes de surgir na Grécia; é, manifestamente, uma vã pretensão. Entre os gregos, alguns dizem que foi descoberta em Sicião, outros em Corinto, mas todos afirmam que começou com o delinear do contorno da sombra humana. Foi o primeiro método; ao segundo, empregando cores isoladas, chamou-se monocromo; este foi de seguida aperfeiçoado, persistindo até aos dias de hoje» (p. 11).
A segunda é um relato sobre a origem da escultura e de todas as artes vinculadas e subordinadas à linha e à sombra:
«Já dissemos o bastante – e talvez até demais – sobre a pintura: passemos à plástica. A primeira obra deste género foi feita em argila por Butades de Sicião, oleiro em Corinto, seguindo uma ideia de sua filha, enamorada de um jovem prestes a deixar a cidade: aquela fixou por meio de linhas o perfil do amante projetado na parede pela luz de uma candeia. De seguida, o pai dela aplicou argila sobre o desenho, dando-lhe relevo, e endureceu essa argila ao fogo» (p. 11).
Amplamente conhecidas desde a Antiguidade, estas histórias povoaram a cultura e imaginário do ocidente ao longo dos séculos. Não obstante, trago-as até aqui porque, como demonstra Stoichita, elas situam as origens da representação artística na relação entre o real e o seu duplo, na diferença entre sombra e luz.
O historiador vai ainda mais longe, afirmando que o nascimento «em negativo» da representação artística ocidental (a ideia de que a pintura, mas também a escultura, surgem sob o signo da ausência do objeto e presença da sua projeção) é de tal forma significativo que a dialética dessa relação pontua toda a história da arte. Mais adiante, acrescenta outro ponto interessante: se a representação artística nasce de um primitivo estado de sombra, a primeira pintura de que fala Plínio não é senão a representação de uma representação, ou seja, a cópia de uma cópia (p. 12).
A partir deste enunciado, Stoichita estabelece uma ligação singular entre o mito pliniano e a alegoria da caverna, na qual Platão compara a Humanidade a um grupo de pessoas aprisionadas num mundo de sombras e ilusão. O autor escreve o seguinte: «O facto de, até ao momento não terem sido estudados/interpretados conjuntamente deve-se sem dúvida ao carácter altamente arriscado da tarefa; de facto, Platão e Plínio falam de coisas diferentes e em diferentes contextos. No entanto, há vários aspetos que justificam o estabelecimento de correlações entre esses dois textos: primeiramente, são ambos mitos de origem (origem da arte em Plínio e origem do conhecimento em Platão); em segundo lugar, o mito da representação artística e o do nascimento da representação cognitiva centram-se no mesmo motivo, o da projeção; e, por fim, essa projeção originária é uma mancha em negativo — uma sombra» (p. 8).
Presentes em ambas as histórias, as noções de ilusão, sombra, eco e reflexo reforçam a tese do autor de que, se a ilusão primitiva é de ordem visual, a sombra constitui a matriz de toda a ilusão ótica.
Uma sombra é a projeção de um corpo ou objeto. É uma ilusão causada por uma incontinuidade da luz, um simulacro forjado a partir de uma realidade transitória. No mundo das ilusões óticas, mas também na arte, a sombra antecede o reflexo do espelho como instrumento de engano e ilusão.
Assim chegamos a Exercício de Divisão, a primeira experiência de intervenção neste espaço, um antigo armazém e depósito industrial convertido em sala de exposições, que acolhe a galeria desde maio de 2017.
Quando entramos na sala principal somos imediatamente confrontados com um espaço duplicado, com a sugestão de uma linha que divide a galeria a meio e define um eixo longitudinal que nos leva a interpretar a «outra metade» do espaço como a imagem especular daquela onde nos encontramos. Contudo, à medida que percorremos a sala e circulamos entre as obras que pendem das vigas ou vemos dispersas pelo chão e paredes, coloca-se-nos a dúvida: o que estamos a ver, será a sombra dos objetos ou o seu próprio reflexo? Uma duplicação da realidade ou a simulação de uma realidade duplicada? Uma repetição espectral que magnetiza o olhar e se espelha infinitamente pelo espaço ou uma mera ilusão de ótica?
Com este trabalho, Galan desafia uma vez mais a perceção do espectador, gerando um conflito percetual entre o que vemos e o que imaginamos, o real e o virtual, e pedindo-nos uma reflexão sobre a natureza fenomenológica e gestáltica da arte contemporânea.
Exercício de Divisão é uma experiência de ficcionalização de uma ilusão cristalizada no tempo e no espaço, pensada para ser uma «obra aberta» à ação do espetador e a um mundo de possibilidades interpretativas e visuais. O artista convida-nos a habitar este espaço de ilusão, proporcionando uma experiência que é simultaneamente visual e corporal. O desafio é passarmos de uma realidade a outra, dos domínios do real e do concreto para os do irreal, ingressando num mundo de efeitos visuais, de especulação e ficção; mas é também um repto que nos recorda o quão importante é ver depois de olhar. É uma obra que aprofunda a nossa relação com o visível, permitindo-nos reconhecer uma série de operações poéticas e subtis que jogam com a nossa perceção do espaço e do que nele acontece.
Depois de experimentar diversas etapas de perceção e reação, quando reconhece o engano e identifica os truques visuais empregues pelo artista, o espectador torna-se subitamente ator e cúmplice da situação. Depois de alguma habituação ao espaço, começamos a perceber os jogos de sombra e luz, as molduras de ferro vazias que projetam reflexos e sombras de vidros inexistentes, as intervenções em elementos arquitetónicos e as quase impercetíveis variações de cor. A imagem especular é uma projeção virtual e ilusória e o espelho uma utopia, um lugar sem lugar; mas é também uma heterotopia e através dele a galeria é convertida num ambiente heterotópico, aberto ao mundo exterior. Ainda que seja acessível a todos, uma vez lá dentro somos confrontados com a sua natureza ilusória e descobrimos que entramos em parte alguma. Uma janela para o virtual, para um mundo especular e de especulação (e revelação) da realidade. Tal como a sombra, o espelho duplica a imagem, ele revela o duplo.
Voltando a Plínio e à ideia de que podemos encontrar as origens da pintura numa linha de contorno, isto é, no desenho de linha, é relevante destacar a importância que a prática do desenho assume no trabalho de Galan. O uso continuado do desenho à mão livre, do esquisso e das anotações gráficas, surge como ferramenta para organizar o pensamento, mas também como um instrumento de investigação, experimentação e organização espacial. De facto, muitos dos seus trabalhos desenvolvem-se entre a bidimensionalidade da imagem gráfica e a sugestão do tridimensional; é através da sua forma mais pura e simples — a linha — que as suas obras e instalações de grande escala estabelecem relações com o desenho. Como acontece em trabalhos anteriores, nesta exposição a linha pode surgir como uma reflexão sobre as novas fronteiras políticas, económicas e culturais. Neste caso, estas fronteiras são as novas delimitações impostas pelo processo de gentrificação da cidade e de enobrecimento de bairros lisboetas como a Marvila, o Beato e Xabregas; bairros onde têm vindo a proliferar, na última década, galerias de arte e ateliers de artistas. Desta forma, cada projeto do artista estabelece uma relação diferente (e única) com o espaço e o seu entorno, incorporando elementos arquitetónicos e estruturais do museu ou da galeria de arte onde são apresentados. O espaço não é apenas um contentor, ele agrega, adiciona e acrescenta múltiplas camadas de significado. Torna-se parte integrante da obra.
Num lugar outrora marginalizado e esquecido, Marcius Galan brinda-nos com uma experiência especular que desestabiliza temporariamente os nossos processos percetuais e interpretativos, convocando as noções de repetição, equilíbrio e simetria, mas também as dualidades que pressentimos no uno e no duplo, na realidade e na aparência, na presença e na ausência. Nesta perspetiva, Exercício de Divisão apresenta-se como um apelo à reflexão e à imaginação, uma experiência de representação que se afirma através das relações ambíguas e ambivalentes que estabelece com o visível, com o objeto, com o espaço (arquitetura) e com o espectador.
Inês Grosso
i) Victor Stoichita, Breve História da Sombra, KKYM, Lisboa, 2016. O ensaio foi publicado originalmente em inglês, em 1997.
ii) Michel Foucault, «Outros Espaços», conferência proferida no Círculo de Estudos Arquitetónico, em Paris em 1967. Texto publicado em 1984.
iii) Michel Foucault, «Heterotopias» e «Utopia do Corpo» foram duas conferências transmitidas pela estação de rádio France Culture em 1966, como parte do programa de rádio Cultura Francesa.