A área de Marcius
Estou vendo hoje, pela primeira vez, uma fotografia do estúdio de Marcius Galan, reproduzida em uma página de revista. É um espaço relativamente amplo e inundado por luz natural. Parece-se mais com uma sala de visitas do que com a oficina de um escultor – uma sala para realizar testes, cálculos e operações delicadas, como espetar tachi-nhas em mapas e lixar borrachas de apagar cada vez mais diminutas. O estúdio merece ser descrito por muitas razões – a maioria delas intrínseca ao trabalho do artista, e que podem fornecer uma justificativa para chamar essa fotografia de Retrato de grupo. Ferramentas – e este será meu argumento – são personagens, atores de um balé geométrico com o qual identificamos o trabalho. Referir-se a elas como “inanimadas” seria uma simplificação terrível.
Um primeiro olhar para o estúdio revela uma fileira de vasos de planta junto à ampla janela, esboços pendurados nas paredes e ferramentas – a maioria delas também penduradas, classificadas ritmicamente, como em uma progressão. Sob o balcão, ao longo da janela, vê-se um pincel modesto ao lado de uma serra de arco, um serrote de costas, um serrote grande, um par de furadeiras e outro de objetos que se parecem com serras tico-tico ou lixadeiras elétricas. O resto desse arranjo está fora do quadro ou obstruído por cadeiras que parecem posar para a câmera. No alto da parede, há um sortimento de ferramentas mais leves: martelos (um de pé e outro de ponta-cabeça, como se procurassem golpear um ao outro), vários esquadros, réguas e apetrechos similares. Aprumado a um lado da janela e ultrapassando a borda superior do caixilho está um objeto fascinante em forma de “T” que poderia facilmente ser um ready-made, se tivesse caído em outras mãos. Esse gigante está cercado de objetos pequenos demais para serem identificados. Todos eles estão resignada e sonolentamente pendurados em seus pregos.
Em suma, trata-se de uma sequência de objetos: frases compostas de funções, verbos à espera (uma ferramenta, seja ela uma broca, um martelo ou uma serra, é essencialmente um verbo tangível). A lembrança de alguns trabalhos de Marcius faz com que eu as observe minuciosamente. Trabalhos como Concêntrico [2014] também se penduram nas paredes – paredes de galeria; são rudimentares e misteriosos, e se comportam como ferramentas surpreendidas em plena atividade. Outros exemplos tais como Eclipse [2013] e O escultor [2010] chegam a incorporar complexos dispositivos mecânicos, como lixadeiras e esmeris, que atuam para o espectador. O trabalho produz trabalho. As ferramentas são reguladas enquanto se empenham em traçar, dividir e conceber o espaço.
Na maioria dos casos, esses dispositivos desenham suas próprias linhas. À medida que demarcam o espaço e / ou modificam uma superfície, eles tornam visível seu próprio movimento. De modo ora acidental, ora descontínuo, o ato de marcar é sua vocação. Contudo, essas marcas não são diagramas ou signos de uma expressividade autotélica. Antes, enunciam o movimento de certo corpo como uma de suas propriedades. Assim como já foi dito que a linguagem é o único poeta, pode-se dizer agora que as ferramentas são os únicos artistas.
Desenho é demarcação, e a finalidade da demarcação é o ato misterioso da divisão e da definição do espaço. Por isso, talvez, muitos círculos e áreas de Marcius sejam inacabados, a fim de realçar o processo de consecução da linha – perímetro enquanto ideia, não enquanto coisa. Donald Judd afirma, em 1983: “O processo é o início, mas o início sempre retrocede; mais do que simples início, portanto, o início é a busca do início”.1 Ao rastrear as operações dos trabalhos de Marcius, descobrimos no estúdio dele um reservatório de gestos corporificados em ferramentas. Resignada e sonolentamente, elas aguardam ser tiradas do prego na parede ou, então, voltar para ele.
A ideia de proporção, embora seja um aspecto fundamental das atividades mencionadas acima, parece não levar em conta a medida numérica. Isso não significa que a medição seja excluída da operação, pelo contrário: medir objetos – um punhado de borrachas de tamanhos variados, as formas de uma bandeira sucessivamente dobrada –, segundo as proporções que guardam com outros objetos, em vez de recorrer a números, parece ser um procedimento bastante frequente na obra de Marcius. A presença inegável de uma inteligência para a proporção, em vez de uma para números resulta na inscrição instantânea e não menos inegável do trabalho no espaço de exibição, como se ele estivesse naturalmente ali. A proporcionalidade supera todo o seu caráter estrangeiro. Judd, novamente, declara:
Proporção é algo muito importante para nós, seja para nosso entendimento e vivência, seja como a concretização da visualidade, uma vez que ela é ideia e sensação indivisas, uma vez que é unidade e harmonia, fácil ou difícil, e, não raro, paz e quietude. A proporção é uma qualidade específica que se pode identificar nas artes plásticas e na arquitetura, ela cria nosso espaço e tempo.2
Um segundo olhar para a fotografia do estúdio dificilmente passaria desapercebido o conjunto de cadeiras espalhadas por quase toda a parte. Algumas delas parecem dispostas para uma discussão entre interlocutores que estão fora do quadro. Na ausência deles, as cadeiras parecem conversar gentilmente umas com as outras. Como já observei, todas as cadeiras parecem posar para a câmera. Não existem objetos mais coquetes, mais fotogênicos e propensos ao flerte do que elas.
Ora, ao esquadrinhar a fotografia, uma coincidência se tornou manifesta para mim. Há uma cadeira no estúdio, um belo exemplar da Série 7, de Arne Jacobsen. O modelo foi lançado em 1955 e desde então tem sido produzido em massa em compensado moldado pela fábrica Fritz Hansen. Há milhares delas em todo o mundo, e um número muito maior de cópias nas residências e nos ambientes de trabalho da classe média global. Eu mesmo tenho uma em meu apartamento em Nova York, e estou sentado nela neste momento. A coincidência, por isso mesmo, é quase corriqueira e de modo algum excepcional, pois sua ocorrência é necessária para sublinhar outra conexão – um triângulo, por assim dizer, que liga o estúdio de Marcius e a sala de estar de meu apartamento a uma terceira instância, um trabalho intitulado Isolante (cadeiras), de 2007.
Esse trabalho apresenta cadeiras amontoadas no chão. Elas foram colocadas desordenadamente umas de encontro às outras, de modo que estão quase todas de pernas para o ar. Essas cadeiras foram envolvidas – nunca se saberá se precisavam de fato disso – por algo semelhante a fitas de isolamento de área, feitas de material mais espesso que o vinil; em todo caso algo que parece ter certa elasticidade. Na realidade, trata-se de uma simulação de fitas, produzida por tiras de ferro pintadas de amarelo, ilusão que nos obriga a considerar sua aparência duplamente: o que é versus o que parece ser. A distância que separa esses termos é tão flagrante e ao mesmo tempo tão pequena que é difícil exprimi-la. No entanto, há ainda outro detalhe que merece atenção. Essa ilusória contrafação do vinil em ferro lembra a fita utilizada para isolar espaços, em geral obras públicas e cenas de crime. É fita para demarcação, e mais uma vez nos pegamos falando de desenho.
A série “Isolantes” de Marcius exprime a preocupação do artista com a essência do desenho no espaço. A tensão e a elasticidade da ideia de desenho são tratadas pela materialidade ambígua de cada trabalho. Seria apropriado indagar o que exatamente os “Isolantes” isolam? O que contém a demarcação, em variações como a referida cadeiras ou repouso, de 2008 e, em especial, Isolante (área), de 2009? Essa última consiste em quatro pregos que definem um quadrado sobre a parede. A fita amarela é atada aos dois pregos de cima. A área, o suposto tema do trabalho, não está ali, e, no entanto, está duplamente.
A fim de abordar esse ponto, gostaria de citar outro artista, em vez de um acadêmico. Em uma de suas declarações pautadas pela brevidade estratégica, Fred Sandback afirma:
Estou interessado em trabalhar naquela área em que o espírito não pode mais se apegar a coisas. […] Uma linha de barbante não é uma linha, é uma coisa, e enquanto coisa ela não define um plano, e sim tudo o mais que se acha fora de seus limites. É um ‘agregado de experiências’”.3
Se concordarmos que os trabalhos de Marcius em alguns casos constituem desdobramentos dessa área a que Sandback se refere, temos, não obstante, de indicar que semelhante área é um espaço móvel, articulado, que põe em comunicação a linguagem nativa específica do espaço da galeria, ou cubo branco, e a linguagem específica do estúdio.
O estúdio é o espaço onde a sequência de gestos executados pelo corpo e suas ferramentas não pode encontrar uma pausa, a menos que se transfira para outro espaço. Contudo, as condições operacionais do estúdio não podem ser reproduzidas facilmente. Assim, quando materiais e gestos são enfim trazidos do espaço da experiência e da experimentação para, digamos, a galeria, a fixidez dos trabalhos exprime não apenas o desempenho dos objetos (a ilusão de ferramentas que se exprimem), mas também a incompletude de sua área de trabalho.
A área não tem nome ou número, mas ela existe. Seu ser é relativo, enganoso, não objetal. A simpli-cidade de um ato de demarcação revela a complexidade do espaço. Ilusão e miragem são propriedades do espaço e exemplos de sua apreensão, a qual é parcialmente tolhida pela onipresença dos padrões de medição numérica (peso, comprimento) que impedem o corpo de medir outros corpos no espaço, uns em relação aos outros e a si mesmo. Perceber de modo mais realista que não existe nenhuma medida absoluta, que todas as coisas são relativas e só podem ser medidas umas em relação às outras, evoca a experiência de vacuidade revelada pelo filósofo budista tibetano Nagarjuna: não existe nenhuma essência individual, apenas relações.
Ferramentas, objetos cotidianos, materiais básicos de construção e utensílios de escritório anódinos aparecem como personagens em uma peça de gestos paralisados montada no espaço de exibição. Mas a área de Marcius é em larga medida uma área intangível. A fita rígida em “Isolantes” – assim como as demãos de cera que simulam séria e impassivelmente um anteparo de vidro nas “Seções diagonais”, outra série magistral – é o farsante ou o Arlequim nesse drama espacial. As relações entre objetos e ferramentas são medidas de proporção: jogos de posições e gestos não métricos. Com a velocidade das coisas, o tempo se torna confuso. E não há quietude, não há parada nem congelamento.
Mais uma vez, olho para cada um dos objetos que descansam no estúdio de Marcius. Estão silenciosos e quase sorriem.
NOTAS
1 Donald Judd, “Art and Architecture”, in Complete Writings 1975-1986. Eindhoven / Holanda: Stedelijk van Abbemuseum, 1987, p. 25.
2 Id., ibid., p. 33.
3 Fred Sandback, in Fred Sandback (catálogo). Nova York: Zwirner & Wirth, 2004, pp. 8-9.