A experiência do lugar
Uma conversa entre Marcius Galan e Fernando Oliva sobre “Ponto em Escala Real, MASP”
Fernando Oliva_ Gostaria de começar falando sobre o seu processo de trabalho para chegar nessa solução aqui do “Ponto em escala real, MASP”.
Marcius Galan_ Eu comecei a pensar esses trabalhos na época da 29a Bienal de São Paulo. Eu tinha dois projetos que eram sobre transposição de escala e um deles era um conjunto de impressões de mapas que eu tirava do Google Maps, recortava um pequeno pedaço de onde estava impressa a linha de uma fronteira e mandava para um laboratório que fazia uma microscopia seguindo a escala do mapa com o objetivo de encontrar a escala real. Eu juntava duas disciplinas, criava uma metodologia própria de raciocínio e, dessa metodologia, criava uma brecha para questionar a precisão dessa representação. Quando a microscopia entra dentro do pedacinho de papel, começam a surgir paisagens formadas pelas fibras e elementos químicos que existem no seu interior, uma paisagem que não existe, contida dentro da linha divisória, que é também um lugar que não pertence a nenhum dos lados, é um espaço entre. O trabalho se chamava “Entre”.
FO_ De que maneira esse pensamento foi ao encontro dessa sua nova proposta?
MG_ Esses trabalhos tentam criar um atrito na ideia de representação do lugar. Aqui, principalmente, quando vocês me convidaram para essa exposição [Avenida Paulista1], eu logo pensei nessa série de trabalhos, já que o MASP é historicamente um ponto de convergência de situações políticas, [um ponto] que ia além da ideia cartográfica apenas, que ia além dessa relação geométrica e cartográfica que tinha no trabalho anterior que eu tinha apresentado na Bienal. Eu fiquei pensando muito na relação do ponto dentro de São Paulo, de criar um elemento gráfico impresso na superfície real da cidade. Mas que, ao mesmo tempo, dependendo da distância que você vê, ele vira um ponto de marcação de lugar como no mapa. De um lado, você tem o distanciamento que o mapa proporciona, organizando nosso entendimento espacial e, por outro, temos o lugar real, que obedece a escala do mapa mas se mistura com toda a confusão da cidade.
FO_ Outros trabalhos seus, como “Isolantes”, também lidavam com problemas semelhantes.
MG_ Sim, a série dos “Isolantes” passava pela ideia de demarcação de território, que parte também dessa demarcação informal do território na rua, das fitas que isolam provisoriamente um lugar. Você vê na rua um cara separando uma vaga de carro com uma fita. Ele vai lá e põe um pilar com cimento, passa uma fita, e vai criando essas relações de território dentro da cidade. Acho que essa questão é recorrente no meu trabalho, dos limites, dos territórios, a linha. E aí passa um pouco desse lugar, que tem uma questão política do território, da relação das pessoas com a cidade, para uma questão do desenho também, uma questão geométrica, do ponto como elemento gráfico, que começa no desenho. Para mim também é muito interessante pensar no ponto como o elemento essencial de desenho na geometria. O ponto de partida para você fazer uma reta são dois pontos, depois para criar uma área são três, mas o ponto mesmo é um elemento abstrato, um elemento completamente fictício. Em qualquer definição de geometria, o ponto não tem uma área. Ele é um elemento completamente abstrato e a partir do momento em que você desenha um ponto no papel, que você marca um ponto, ele passa do plano da ideia para o plano da superfície em que ele se apresenta como ponto, ele passa a ter um tamanho. Ele é uma contradição em si. Então, eu ficava pensando que a geometria começa numa grande contradição: a de você criar toda a estrutura lógica da representação do espaço com um elemento que é completamente impreciso. Então, essa questão da precisão e imprecisão eu acho que é o ponto de partida deste trabalho.
FO_ Essa imprecisão não estaria relacionada ao fato de ser um vocabulário comum que tem que dar conta de uma gramática global? Porque um ponto é sempre o mesmo, no mapa, na cartografia. Mas pode representar tanto uma cidade como Sarajevo, quanto Curitiba. Ele tem esse aspecto apolítico da cartografia, mas ao mesmo tempo ele não consegue escapar da política, porque não dá conta das transformações, da velocidade das transformações políticas. Estou falando isso porque a Paulista, o MASP, se tornou esse ponto, que entrou em curto-circuito, com manifestações desde as mais libertárias e progressistas, até as mais reacionárias e conservadoras.
MG_ Exatamente, e foi o que me fez pensar nesse trabalho para esse lugar aqui. A Paulista já tem isso e o MASP principalmente se tornou um ponto de convergência. Mas são duas linhas de raciocínio que seguem paralelas. A questão da precisão está muito relacionada à ideia de geometria mesmo, achar uma brecha dentro de um sistema de precisão. Lógico que existem algumas regras que eu vou criando que são meio arbitrárias, que eu vou colocando ou vou associando disciplinas para criar um espaço onde eu possa duvidar da ideia de representação.
FO_ Eu pensei, Marcius, se não haveria uma contradição, se o seu projeto não está nessa fronteira entre um vocabulário compartilhado, que é a cartografia, e o ponto na cartografia, que tem que buscar uma neutralidade, ele tem que ser neutro. Ele vai trabalhar com ordens de medida, a quantidade de pessoas na cidade, os pontos vão ser maiores ou menores. Eles vão ter cores também. Quem já viu um mapa desses, uma cartografia Michelin, por exemplo, sabe da precisão que um sistema como esse pode alcançar.
MG_ Sim, essa organização não é precisa, porque na verdade você tem duas coisas: o ponto entra como elemento gráfico, que é uma representação, e a cartografia tem uma escala. Essa escala dá conta de tudo que está no mapa, menos as linhas e os pontos, que é uma outra camada que está ali no mapa, que você tira, que você olha o mapa quase como se tivessem dois layers. Então, quando você submete esses elementos gráficos à escala do mapa, que é o que eu fiz para este trabalho, esse ponto vai ter tamanho, que é uma aberração cartográfica, quer dizer, geométrica neste caso. O ponto é um elemento teórico, ele não é um elemento que pode se mensurar. Então essa ideia de você ter um ponto no mapa em uma escala e você ter esse resultado refletido em tamanho real é uma brincadeira geométrica que lida com essas questões de dúvidas, de dúvida da representação. Quando você representa um espaço no mapa, esse espaço é cheio de particularidades e hoje em dia a gente tem um reconhecimento por representação de tudo, a gente sabe mais ou menos como é o mapa de cada lugar, de cada capital, a gente tem um reconhecimento, só que a gente não tem a experiência. Essa relação entre a experiência do lugar e a representação do lugar é outra coisa que me interessa. Acho que a hora em que você tem o ponto no lugar em que você pisa, você anda por cima, é como se fosse essa passagem da representação que está dentro do museu, na moldura, daquele ponto num mapa que é totalmente branco, sem nenhuma referência e esse ponto refletido no piso, no chão, na cidade, onde as coisas acontecem, onde acontecem manifestações, onde jovens se reunem para fumar maconha, onde as pessoas que não têm onde dormir encontram abrigo. A experiência do lugar versus a possibilidade virtual de um conhecimento global superficial, distante. Quanto mais distante, mais preciso.
Fernando Oliva é curador, pesquisador e docente. Integra a diretoria artística do MASP. É doutor em História e Crítica de Arte pela Universidade de São Paulo.