Fervor
Fervor
Em sua busca, em meio aos trabalhos de concreto (matéria-prima singular para ele), precisamente ali, encontrou a resistência.
Entretanto, depois de tantos outros artistas antes dele, de que modo comporia sua forma?
Seu ofício, coloquemos assim, se realiza ao longo de um fluxo de ideias que deixa no caminho vestígios de trabalhos, uma contínua rede de digressões que daria a qualquer indivíduo, a par de seu processo, a sensação de estar já em meio a uma história que começou há algum tempo.
Ora, que história é essa?
Ele a narra, enquanto acontece, uma história entremeada por interpolações que cobrem de maneira sutil nossa realidade. Vejamos: duas colunas de concreto com cunhas. Esta última tão ampla em seus significados. Nome pessoal, expressão, lugar, coisa. A cunha parece sublinhar as intenções, os equilíbrios; da intrusão, mas pertinente intervenção. Não bastasse isso, nesse corpo estranho encontramos a força da obviação dessa matéria. A presença dos fatos incontornáveis. E, por não se limitar a nenhum dos sentidos anteriores, se amplia e se transforma em reduto impessoal, espaço de influxo universal. A cunha cavou seu espaço: resistiu. Eis outro trabalho: no chão, um disco de concreto com cunha. O prenúncio anterior poderia servir de pista, mas não de resposta, pois aqui nos deparamos com outra inflexão. Uma vez mais (e, não pelo concreto), o artista nos faz ter um flashback. E, se resistimos em apreender a razão dessa nova inserção, sabemos que ele fará novamente no futuro. Bom, não confundamos sua proximidade com o chão com a falta de peso estrutural. Sabemos seu nome, suas propriedades, sua razão de ser. Nesse caso, parece ter o papel de apontar para um centro de convergência, o âmago da questão.
Ou será demais assumir que nele vemos nossa própria situação econômica? Tentação irrefreada, porém, uma vez mais, sabemos que, no particular, no específico, não encontraremos a sua real força.
No concreto? No concreto.
Seria essa matéria indicativa da especificidade do que se trata aqui?
Seria uma ilusão presumirmos essa relação?
Não deixemos a sombra dessa questão incomodar nossa visita. Sigamos: três bases maciças de madeira queimadas por bronze líquido. E, assim, fazemos soar uma melodia: o som do bronze em contato com as bases de madeira. Mas, é uma que já não escutamos. Sabemos que não foi algo gradual, sutil. Apenas ficamos com suas novas alturas inauditas. Seus foscos tons reluzem fortes. Parecem não esgotar todos os seus meios para serem, subsequente e inevitavelmente, substituídos. Continuam ali: resistentes.
E, que sucessão de outros trabalhos distinguiremos aqui?
Nesse espaço repleto de relativa opacidade, haveria outrossim momento para sobressalto material como o seguinte: lixa e vidro pintado de vermelho a terroso. O tom se torna protagonista (faiscar mineral), por um momento, em pulsos rápidos: vermelho lávico, grená, bordô, em ebulição, queimando-se, até atingir, intrusiva e vulcanicamente, a escuridão. E, a arquitetura-parede converte-se em matéria abrasiva capaz de consumir, arruinar e destruir. Que mitiga os excessos barrocos, lima as asperezas, risca os sentimentalismos e imprecisões … Assim, ele nos apresenta o espaço de contato: atritivo, convulsivo, fervoroso. Para os que estão chegando agora: a pedra de toque que vemos em contato com o negror da pintura automotiva faz com que voltemos ao básico abstracto. Estaríamos sempre formulando trajetórias e equações sem clareza lapidar? Mesmo que seja esse precisamente o tema a que mais nos diz respeito?
Por meio do olhar minucioso, por entre as suaves tapeçarias monocromáticas vermelhas, encontraremos carrapichos agarrados. Indesejáveis, daninhos, espalham-se rapidamente através de um desdobramento que depende de como abraçam, atracam, com espinhos que servem para semear. Parecem terem sido deixados como vestígios de um processo contínuo de atrito. O calor. A convulsão. O momento de difícil contato. De resistência. O momento quando o bronze esfria e que, por sua vez, aparece, uma vez mais, por meio da figura da resistente madeira: o vulcão inerme, nu, desmontado. Haveremos de reconhecê-lo em nosso entorno. Seu eco, esquemático e racional, conteudístico e insensível, se faz presente por entre a ebulição de seus omissos sinais de fumaça.
E, que tensão-resolução ele nos traz?
É na segunda estrofe, novo eco, que atingimos a plena potência. Quando vemos, novamente, a coluna de concreto com a delicada linha flutuante (tal qual lâmina meridional nervosa) que a secciona. Percebemos além da força daqueles que são e sempre serão. Entendemos que o ponto obscuro que nos permite ver, o sol situado eternamente abaixo do horizonte, a mancha cega que o olhar ignora, ilhota de ausência no seio da visão, eis o objetivo da busca e o lugar, o cerne da intriga. E só.
-
BORGES, Jorge Luis. Fervor de Buenos Aires. Parafraseado do prólogo escrito pelo autor na edição de Emecé Editores de 1974.
-
BLANCHOT, Maurice. O Livro por vir. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 236
-
FAULKNER, William. O Som e a Fúria. Tradução Paulo Henriques Britto. São Paulo: Cosac & Naify 2004. p. 331