Vigia

Gilberto Mariotti
Fundação Ema Klabin, 2017

Vigia

para “Penetra”, de Marcius Galan por Gilberto Mariotti

“Dos pântanos de águas salobras vejo a parte alta da colina, os veranistas habitam o museu.” Bioy Casares, “A invenção de Morel”

 

  1. Sentinela

Sentinela, o vigia ronda a peça da qual se julga guardião e observador. Apreender ou compreender por meio do olhar, é ação que pode diminuir as distâncias entre observador e colecionador – olhar em volta, circular pelos espaços que afirmam seu valor intrínseco tendo como prova sua acessibilidade recente.

O vigia faz sua ronda ciente de que sua razão de ser depende de ameaça permanente, real ou imaginária. O perigo lhe salvaguarda a função, uma insegurança difusa garante seu ganho. A ameaça, de quando em vez, deve se fazer representar por violência exemplar: uma cerca dobrada, uma grade retorcida, um canteiro de flores pisadas, uma fechadura forçada, um corpo. Qualquer exemplo que atue contra sua obsolescência.

O limite de sua definição chega com a guarda de um prisioneiro. A liberdade deste outro é seu maior medo. Dirige sua ação à inação do outro. Em condição de suspensão permanente, ocupa-se todo tempo com sua fuga iminente, fazendo-se disso também prisioneiro. Torna-se do outro seu complemento.

Vigilante, ao lado da cela, adormece apesar de todo esforço em evitá-lo, e assim vela o sono do prisioneiro. A este só resta fazer o mínimo necessário: o prisioneiro guarda toda sua energia.

Cúmplices, vigia e prisioneiro acabam por se sustentarem mutuamente. Colegas, observador e vigia se alternam em turnos, dia e noite. Em uma mesma órbita, compartilham da mesma missão, sustento e defesa de algo que chamam, sempre que entre si, de bem comum.

 

 

  1. Convidado

Como saber se isto que meus olhos me dizem corresponde ao que dizem os olhos dos outros? Como em Freud, algum deslocamento é necessário à chamada prova de realidade. Enganosa se entendida simplesmente como condição na qual se pode distinguir o real do falso, esta formulação refere-se mais propriamente à condição ou processo pelo qual pode-se distinguir mundo interno de externo. Tal distinção depende diretamente do gesto, do movimento do corpo, que pode revelar a origem de certaspercepções[1].

Algo do trabalho de Marcius Galan opera nesta chave de interação com o público, que se descobre desafiado pela própria visão em um primeiro momento, e após deslocado o ponto de vista, descobre um material que se fazia passar por outro, o que em muitas situações significa também um deslocamento de sentido: reconhecer, por exemplo, um material que hoje tem a função corrente de criar espaços exclusivos, para depois perceber o espaço novamente acessível ao corpo. A ilusão se concretiza, pondo em discussão público e privado. O truque nos coloca bem de frente ao segredo, pelo simples desvelamento do que já era evidente.

 

No caso específico de “Penetra”, no entanto, não há ilusão de ótica ou efeito que engana o olhar. Os objetos assumem de boa fé seus materiais e suas formas não têm a ambigüidade de outras peças desenhadas por Marcius. O deslocamento de sentido depende de uma movimentação por diferentes espaços da casa, seu jardim, e até mesmo para além dos muros da Fundação.

 

Enquanto visitantes da exposição estamos duplamente implicados, por que o estratagema de iludir a visão para deste modo atiçá-la se confunde com o movimentar do corpo pelo espaço. A mágica talvez demande um trabalho exagerado dos olhos para que o corpo, esquecido à própria sorte, acabe colaborando com o truque, ao divagar pelos espaços previamente disponíveis, e participar de uma narrativa maior, só revelada ao fim do caminho.

O vagar pela casa-museu cumpre papel fundamental no processo de composição desta proposição, completa apenas pela ação do visitante. Como na narrativa própria do filme ou do livro[2], nossa experiência se dê pela apreensão ordenada de espaços conexos, reservados entre si mas interagindo por justaposição. Um dispositivo em que exterior e interior sejam ao mesmo tempo conteúdo e narrativa, a demandar a um só tempo o foco de quem invade o alheio e certa atenção flutuante de quem passeia, um pouco do incomodo que sente um intruso e outro tanto do desaviso de quem se toma por convidado.

 

  1. Intruso

Passagem controlada, administração excludente, uma grade, apesar de sua materialidade inconteste, não se define pela resistência de seu material, pela altura que alcança ou pelo tamanho de suas barras, mas pelo vão, o vazio pelo qual deixa ver de fora o que protege, visto que não pretende ser muro. Estando à frente de uma janela, define-se pela abertura que oferece à vista, pelo ar que faz circular entre dentro e fora.

Um portão que se descola e dobra, como um biombo a separar despretensiosamente os espaços – tarefa que conta com a educação dos usuários, mais do que com sua força – e pretende conviver com quem achou para si um jardim que o acolhe à parte do barulho da avenida, só pode estar em função deslocada. Indica pela falta de suas lanças sua perversão, que torna o vazio quase um espaço, a lacuna um lugar. Os convivas já aproveitam-se dele, fazendo do inútil obra do imprevisto.

O vazio toma sustância às custas do desenho da janela, que havia lhe roubado o primeiro plano. Não propriamente penetra[3], apenas torna evidente o fosso que separa dentro e fora.

O vigia em alarme silencioso identifica o intruso. Dá-se conta de que pode ter perdido o controle. Volta apressado à entrada principal e respira com certo alívio: o portão ainda está lá. Permanecerá fechado enquanto não se cumpre seu turno.

[1]“Uma percepção que uma ação pode fazer desaparecer é reconhecida como exterior, como realidade: se a  ação não modifica a percepção, é por que esta vem do interior do corpo e, portanto, não é real”. Retiro o trecho não diretamente do texto de Freud. Cita-o Arlindo Machado em seu “Pré-cinemas e Pós-cinemas”, indicando com isto a condição passiva em que o espectador do cinema se encontra dado que é exigida de seu corpo total imobilidade, em contraste com o trabalho intenso que demanda do olho, reflexão fundante deste texto.

[2]Recordo que em nossa primeira conversa sobre este Jardim, Marcius associou o convite que lhe fazia à sua leitura de então, “A invenção de Morel”. Embora a associação tenha me parecido pertinente, a elaboração das propostas não seguia por nenhum caminho que evidenciasse a ligação entre o museu-casa em que estamos e o de Morel. Volto a esta relação como a uma evidência esquecida: de modo análogo ao que ocorre na narrativa do livro de Bioy Casares, sobrepõem-se a esta casa as projeções fantasmáticas de um passado glamoroso, pleno de detalhes de uma configuração domiciliar que sempre nos remete ao interior de seus habitantes, destes sendo expostos modo de vidae modo de funcionamentoda casacomo estrutura um do outro. Também compartilhamos com o narrador em primeira pessoa a condição de visitante ignorado pelos personagens que habitam o museu do qual anseia fazer sua casa, como se bem lê no excerto que serve de epígrafe a este texto. Para não mencionar a esperança ridícula que cresce no narrador de conquistar a intimidade de uma figura feminina presa no passado, depositada na tentativa de cultivar um pequeno jardim…

 

[3]Pergunto-me se algum dia o leitor já teve a experiência de ser expulso de um endereço significativo de sua freqüência. Apontado: penetra. Esclareço que este tipo de ignomínia nem sempre ocorre com o alarde das façanhas heróicas mas, ao contrário, como um procedimento previsto em programas de capacitação para profissionais da segurança, um expediente necessário: um Alguém, que nunca pode ser culpado por seu lugar de mero cumpridor de ordens, se aproximará do leitor e rosnará por entre os dentes a ameaça de uma violência maior, de um tipo de humilhação que só mete medo em quem se quer pertencente a um lugar tão respeitado. O Alguém lhe conduzirá então até a saída e, ao lhe dar as costas para retornar ao seu posto, lhe deixará com uma palavra crua. Caberá ao leitor degluti-la pelo tempo que for necessário. Lá dentro a encenação seguirá por si só. Na calçada o leitor poderá culpar-se por antes ter tentado entrar, por depois ter pensado que conseguiria ficar, ou até por ter se deixado expulsar. Pouco conta por o quê: o leitor deveria saber que não pertence a este lugar.